*por Raphael Vidigal
“Por enquanto/ há escória/ de sobra.
O tempo é escasso –/ mãos à obra,
Primeiro/ é preciso/ transformar a vida,
para cantá-la –/ em seguida.” Maiakovski
O Brasil vivia em 2006 o auge do governo Lula, reeleito naquele ano para o segundo mandato, do qual sairia com 87% de aprovação, um recorde até hoje difícil de ser batido. Aquela tinha sido a última vez em que Jorge Mautner lançara um disco de inéditas, com “Revirão”. Alegre, solar e elétrico, o álbum refletia uma nação cheia de orgulho e esperança. Como de praxe, o carioca Mautner, filho de judeus que vieram para o país fugindo do holocausto e definido por Caetano Veloso como “hipertropicalista”, colocava o Brasil no centro de suas inquietações artísticas, em composições como “O Executivo Executor” e “A História do Baião”.
Decorrida mais de uma década, Mautner apresentou um novo trabalho autoral. “Não Há Abismo em que o Brasil Caiba” (frase do filósofo português Agostinho da Silva), de 2019, leva a coqueluche do artista para outro espaço, como o próprio título entrega. “Urgente é a segunda abolição de Joaquim Nabuco (diplomata e historiador, 1849-1910). Esta ainda não chegou. Ele disse que a abolição de 1888 deveria ser seguida por outra, que é a instrução pública, desde os CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública) até universidades para todo o povo brasileiro. Esta segunda abolição é a distribuição de renda”, sustenta ele.
“A Bandeira do Meu Partido” (hino, 1958) – Jorge Mautner
“Jorge foi um agente político fundamental para momentos decisivos da nossa história. Ele guarda visões e até profecias, porque é ótimo nisso, que são mais atuais do que na época. Isso é valioso”, afirma Cecília Beraba, que se tornou parceria de Jorge Mautner e apresentou as primeiras canções da dupla no álbum “Eterno Meio-Dia”, lançado em 2021. Em 1962, Jorge Mautner se filiou ao Partido Comunista Brasileiro. Com o golpe militar de 1964, acabou preso. Solto, se exilou em Londres e nos Estados Unidos, onde trabalhou na Unesco. De volta ao país, contribuiu em “O Pasquim”. A atividade política, claro, transparece na música. Em 1958, Mautner compôs “A Bandeira do Meu Partido”, hino comunista que ele cedeu ao PCdoB em 2017, quando recitou um trecho de Brecht. A canção também integrou a refilmagem cinematográfica de “O Bem Amado”, já em 2010.
“Super Mulher” (balada, 1972) – Jorge Mautner
O disco de estreia de Ana Cañas já delineava a temperatura elevada da personalidade da artista. Paulistana formada em Artes Cênicas pela USP, a cantora aliava suas qualidades performáticas a um texto com mensagens bem direcionadas. Em “Amor e Caos”, ela dá voz a músicas de Caetano Veloso, Bob Dylan e Jorge Mautner, em faixa com a participação do percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, um dos maiores craques do gênero. Trata-se de “Super Mulher”, balada com influências indianas lançadas por Mautner em 1972, no disco “Para Iluminar a Cidade”, que deu o pontapé oficial em sua carreira no mercado fonográfico. No repertório, ainda constava as irreverentes “Quero Ser Locomotiva” e “Sapo Cururu”, folclore com arranjo de Jorge Mautner.
“Chuva Princesa” (tropicália, 1972) – Jorge Mautner
Jorge Mautner faz uso de sua poesia simbolista, concisa e consistente para alçar a chuva ao papel de musa de sua composição “Chuva Princesa”, uma peça tropicalista escrita em 1972. Afinal, todas as vertentes de seu trabalho no cinema, na música, no teatro e nas artes plásticas são veios para espalhar a sua literatura, como o próprio já declarou em diversas entrevistas. Nesta composição, aparentemente simples, e certamente singular, o artista alinhava versos singelos para transmitir a ética de sua conduta: é o amor, assim como a chuva, essa força da natureza, a quem se deve proclamar, assistir, e eventualmente transmutar, ou procurar esse contato mais próximo com a origem da existência humana, numa relação de respeito e não autodestruição. A música foi regravada no álbum “Pedaço de Mim”, por Zizi Possi, em 1979.
“Lágrimas Negras” (blues, 1974) – Jorge Mautner e Nelson Jacobina
“O que afetou os rumos de Gal de maneira mais decisiva foi a recepção irregular ao disco ‘Cantar’, de 1974. Nele, Gal recolhia as garras políticas e se voltava de maneira mais significativa para a sua essência de cantora. Isso motivou mudanças substanciais na condução da carreira da baiana”, afirma o pesquisador Renato Contente, autor do livro “Não Se Assuste, Pessoa!”, que analisa as trajetórias musicais engajadas politicamente de Gal Costa e Elis Regina. No álbum citado, havia algumas pérolas, como, por exemplo, “Lágrimas Negras”, um blues de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, dono de alguns dos versos mais bonitos da música brasileira: “Belezas são coisas acesas por dentro/ Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento”. A canção ganhou regravações do próprio Jorge Mautner, de Caetano Veloso e de Otto com Julieta Venegas.
“Pipoca à Meia-Noite” (tropicalista, 1974) – Jorge Mautner
Rogério Duarte foi uma dessas personagens periféricas da Tropicália à qual muitos não ligam o nome à arte. Muito embora sua contribuição tenha sido fundamental para o movimento. Músico e artista gráfico natural do interior baiano, Duarte foi responsável pela criação das capas de discos icônicos de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Jorge Mautner, os primeiros a esbanjar a estética psicodélica e colorida do Tropicalismo. No caso de Mautner, é dele a arte gráfica do álbum de 1974, com o artista no meio, segurando seu violino, de longos cabelos soltos e camisa aberta, as pernas cruzadas dentro de uma calça vermelha em formato de quatro, rodeado por imagens dele próprio e de outras personalidades, numa espécie de circunferência em que cobras mudam de cor. Em consonância com esse espírito está a hiper-tropicalista cantiga “Pipoca à Meia-Noite”, uma provocação que recebeu a releitura pop do astro Lulu Santos.
“Maracatu Atômico” (tropicalista, 1974) – Jorge Mautner e Nelson Jacobina
O movimento manguebeat deve muito a uma dupla nascida no seio do Tropicalismo. Na década de 70, Jorge Mautner e Nelson Jacobina compuseram juntos “Maracatu Atômico”, com imagens que angariavam para si uma liberdade completa e desbravadora em tempos de ditadura militar. A música foi lançada pelo próprio Mautner em 1974, e regravada por Gilberto Gil no mesmo ano. Mas foi a versão da Nação Zumbi, à época capitaneada por Chico Science, que a levou ao sucesso definitivo, quando, em 1996, ela reapareceu no álbum “Afrociberdelia”, que a apresentou a toda uma nova geração. Os versos poéticos de Mautner combinados à melodia de Jacobina e ao som da Nação foram vitais.
“Samba dos Animais” (samba, 1974) – Jorge Mautner
Com o passar do tempo, o disco “Feiticeira”, gravado pela atriz Marília Pêra, em 1975, ganhou aura cult. Acompanhada pelo grupo de rock psicodélico Vímana, do qual faziam parte Lulu Santos, Ritchie e Lobão, Marília interpretou repertório que ia de Jorge Mautner a Eduardo Dussek, com direito a participações especiais de Walter Franco e da dupla Luhli & Lucina. Ela ainda gravou mais 5 álbuns. Nesse disco de estreia, escolheu da autoria de Mautner a impagável “Samba dos Animais”, lançada pelo próprio autor um ano antes, em 1974, no álbum que apresentou ao mundo a icônica “Maracatu Atômico”, além de “Herói das Estrelas”, “Ginga da Mandiga”, “Matemática do Desejo”, entre outras. “Samba dos Animais” também foi interpretada por Mautner no espetáculo “O Banquete dos Mendigos”, uma estratégia do irreverente Jards Macalé para “arrecadar doações” para si e homenagear os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma farpa no âmago da ditadura militar, em total dissonância com os propósitos do documento da ONU. A música foi regravada ainda por Lulu Santos.
“Olhos de Raposa” (mambo, 1974) – Jorge Mautner
Em 1974, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Moraes Moreira, Jorge Mautner, Galvão, Roberto e Erasmo Carlos e outros nomes do cenário nacional criaram canções especialmente para homenagear e serem interpretadas por Edy Star, baiano pioneiro em trazer as influências do rock cheio de purpurina para o Brasil, reconhecido no exterior como “glam”. Edy havia aparecido primeiro no disco “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10”, de 1971, disco que Raul Seixas aproveitou para gravar às escondidas quando os executivos da CBS saíram de férias e deixaram o estúdio livre para ele, que atuava como produtor na gravadora. Sérgio Sampaio e Miriam Batucada também participaram da intrépida empreitada. De volta a Edy, ele recebeu de Mautner o mambo “Olhos de Raposa”, próprio para sua personalidade provocativa e performática.
“Bolinhas de Gude” (MPB, 1976) – Jorge Mautner
A mineirinha Selmma Carvalho já apareceu fazendo barulho. Em sua estreia no mercado fonográfico contemplava com sua voz as criações que iam de Lobão a Luiz Gonzaga, passando por Walter Franco, com um tempinho de parada em Djavan, Sá & Guarabyra e Vinicius de Moraes. No segundo título não deixou por menos. “Cada Lugar Na Sua Coisa”, de 2000, trazia esta canção de Sérgio Sampaio, e outras de Zeca Baleiro, Jorge Mautner, Carlos Careqa, Mathilda Kóvak e Danilo Caymmi. Da lavra de Mautner, emprestou a límpida voz para “Bolinhas de Gude”, uma canção sofisticada e singela, combinando características caras à poética do compositor. A letra versa sobre um desenlace amoroso. “Eu não sei como pude esquecer teus olhinhos/ Bolinhas de gude/ Eu não sei como pude te tratar e gritar/ De um modo tão rude/ E que Deus me ajude, e que Deus me ajude/ E que Deus me ajude”. Foi lançada por Mautner em 1976.
“Samba-Jambo” (samba, 1976) – Jorge Mautner e Nelson Jacobina
Se é mesmo verdade que o segundo disco serve como uma prova de fogo, a carioca Júlia Vargas passou com louvor nesse teste. Ao rebobinar a estética tropicalista com o álbum “Pop Banana”, de 2017, a intérprete iluminou novos cantos da canção popular brasileira ao misturar canções de nomes da nova geração, como Claos Mózi e Carlos Posada, com os eternos rebeldes Jorge Mautner e Tom Zé. Cheia de atitude, Júlia elegeu da lavra de Mautner a irresistível “Samba-Jambo”, parceria com Nelson Jacobina lançada pelo autor em “Mil e Uma Noites de Bagdá”, LP de 1976 que também continha “Bolinhas de Gude” e “Diamante Costurado no Umbigo”. É, portanto, da fase mais hippie de Mautner, por assim. “Eu não ando eu só sambo, por aí…/Esse samba jambo…”.
“Todo Errado” (MPB, 2002) – Jorge Mautner
Segundo o jornalista e pesquisador musical Joaquim Ferreira dos Santos, o cantor Anísio Silva, primeiro brasileiro a faturar um disco de ouro, graças ao estouro de “Alguém Me Disse”, em 1960, era um “falso brega”: “Não levantava a voz, não soluçava, não rasgava a roupa em cena. Parecia narrar, quase falando, o triste fim-de-caso que lhe havia acabado de acontecer”. De acordo com Caetano Veloso, “Interesseira”, bolero de Bidu Reis e Murilo Latini, lançado por Anísio em 1958, teria inspirado a canção “Todo Errado”, do sempre antenado tropicalista Jorge Mautner. O autointitulado “Filho do Kaos” a lançou justamente em parceria com Caetano, no álbum que os dois dividiram em 2002. “Todo Errado” é uma canção envolvente, divertida, que não deixa de conter uma ironia.
“Os Pais” (reggae, 2006) – Jorge Mautner e Gilberto Gil
Canção lançada através da fértil parceria entre Jorge Mautner e Gilberto Gil, oriunda do período tropicalista de ambos, no ano de 2006, “Os Pais” faz alusão justamente a uma temática ultramoderna, ao explicitar as contrariedades e contradições inerentes aos pais da nova geração, que não encontram o meio-termo entre as liberdades e os temores presentes nos tempos modernos. A música foi gravada tanto por Gil quanto por Mautner, e na versão do baiano teve reforçada a melodia ao ritmo de reggae. Já Mautner preferiu abordagem mais langorosa, interpretando-a com indolência. “Os pais, os pais, estão preocupados demais, com medo que seus filhos caiam nas mãos dos narco-marginais, ou então na mão dos molestadores sexuais, e no entanto ao mesmo tempo são a favor das liberdades atuais! (…) mantém-se a moral por um fio, um fio dental…”.
“Palmeira Brasileira” (samba, 2012) – Rogério Skylab e Jorge Mautner
Rogério Skylab tornou-se nome de alcance nacional a partir de aparições no programa de Jô Soares. Em suas músicas, Roberto Carlos, Chico Xavier, Glória Maria, Fátima Bernardes, Maria Bethânia já foram citados, quase sempre com sarcasmo. Ao mesmo tempo, Arrigo Barnabé, Jorge Mautner, Walter Franco, Chacal e Arnaldo Antunes, tratados com reverência. Skylab, inclusive, orgulha-se da parceria com Mautner, “Palmeira Brasileira”, do disco “Abismo e Carnaval”, de 2012. Um samba autêntico, lírico, sinfônico, na melhor tradição da música brasileira. “Eu sou um tipo de compositor que sempre vai buscar caminhos ainda não explorados. Isto é, inexplorados ainda por mim. Se você der uma examinada no conjunto do meu trabalho, vai chegar a essa conclusão”, garante o inventivo Skylab. Ao fim da letra, Mautner recita versos do poeta russo Vladmir Maiakovski.
“BABEBIBOBU” (tropicalista, 2014) – Jorge Mautner e Nelson Jacobina
Uma celebração do circo não pode deixar de fora a figura exuberante de Silvia Machete, sempre arteira com suas maracas e bambolês. A atividade circense formou a artista nas ruas da França e de Nova York. E Silvia não esqueceu essa escola, ao contrário. Depois de três discos com todas as plumas e paetês a que ela tem direito, a intérprete ofereceu ao público “Souvenir”, em 2014. No esperto repertório, músicas de Angela Ro Ro, Eduardo Dussek e da dupla Jorge Mautner e Nelson Jacobina, que contribuiu com “BABEBIBOBU”, prenhe da Tropicália que os guia desde os anos 1970. Irreverente, lânguida, debochada, a canção traz ecos de Lamartine Babo, por meio de ditados reciclados pela transgressão.
“Marielle Franco” (MPB, 2019) – Jorge Mautner
A morte da vereadora Marielle Franco (1979-2018), em crime que ainda não foi solucionado pela polícia passados mais de dois anos, acendeu em Jorge Mautner uma inspiração em forma de transe. “No dia em que ela foi assassinada, eu, com a emoção estraçalhada em meu coração, compus a letra e a música naquela mesma hora sinistra”, relembra. Batizada com o nome da ativista que se tornou símbolo da luta a favor de minorias, a faixa é a sexta das 14 do álbum “Não Há Abismo em que o Brasil Caiba”, de 2019, e traz os versos: “É preciso arrancar/ Da medula dos ossos/ Dos nervos até a epiderme da pele/ Este medonho cancro/ Que matou Anderson Gomes/ E que matou Marielle Franco”. “Marielle representa a democracia em plenitude, feita com justiça social”, exalta Mautner.
“Esquadrão da Morte” (MPB, 2021) – Jorge Mautner e Cecília Beraba
“Esquadrão da Morte” nasceu de uma crônica escrita por Jorge Mautner na década de 1970, repercutindo a notícia assustadora de uma execução pela milícia carioca. “Morto, triturado/ Que nem porco/ Que nem gado/ No padrão e no esporte/ Às seis para as seis/ No facão e no corte/ Das leis sem leis/ Do esquadrão da morte”, descrevem os versos interpretados pela carioca Cecília Beraba, autora da melodia, que bramem contra a realidade de um país que elegeu a presidente da República o candidato que durante três décadas de atividade parlamentar defendeu e incentivou as milícias, e cuja ficha corrida contém uma condenação em três instâncias por apologia ao estupro. Em “Esquadrão da Morte”, Cecília ainda recita um poema sobre as diferenças entre bonobos e chimpanzés, duas espécies distintas de macacos: a primeira guiada pelo prazer sexual e, a segunda, pela violência. A música foi lançada no disco “Eterno Meio-Dia: Parcerias com Jorge Mautner”, estreia de Cecília no mercado.
Foto: Leo Martins.