*por Raphael Vidigal
“A felicidade do literato é o pensamento que é todo sentimento; é o sentimento que consegue tornar-se todo pensamento.” Thomas Mann
Fundador do histórico grupo Rumo, um dos ícones na década de 1980 da chamada Vanguarda Paulista, o múltiplo artista Luiz Tatit – músico, linguista e professor universitário –, realiza, com sua obra, um encontro entre a criação e a análise. Tatit afirma que essa obra é marcada por “certa dificuldade com a vida”. “Talvez eu carregue certo excesso de ironia que não me permite fazer letras sem conflitos internos, nem que sejam apenas aludidos, mas é claro que há exceções”, salienta o artista. Esta obra única e particular da música popular brasileira aponta rumos e destinos para o Brasil, apesar de suas imensas contradições. Ou, talvez, por causa delas mesmas. Eis o país dos contrastes.
“Canção Bonita” (vanguarda, 1981) – Luiz Tatit
Originário do francês, o termo “vanguarda” parece ter caído em desuso nos dias atuais, quando se alardeia, em diferentes áreas, a volta do reacionarismo e de uma onda conservadora. Nas artes, a palavra tornou-se sinônimo de “ruptura de modelos preestabelecidos, defendendo formas não tradicionais e o novo nas fronteiras do experimentalismo”, de acordo com o dicionário Aurélio. Ná Ozzetti fez parte de uma das principais bandas da chamada vanguarda paulista, movimento surgido em fins da década de 70 que teve, entre outros, pares da importância de Itamar Assumpção (1949-2003), Arrigo Barnabé, Cida Moreira e Tetê Espíndola, sem falar nos grupos Premeditando o Breque e Língua de Trapo. Luiz Tatit, fundador do grupo Rumo e autor de “Canção Bonita”, cantada ao lado de Ná em 1981, completa: “O Rumo do primeiro disco tinha alcançado um estilo próprio dentro de um experimentalismo cancional, não propriamente musical, e registrou esse momento”.
“Olhando a Paisagem” (vanguarda, 1986) – Luiz Tatit
Em 1981, o grupo Rumo conseguiu a proeza de lançar dois discos de uma tacada só, logo em sua estreia no mercado fonográfico. Além de um trabalho de inéditas, a trupe apresentou a sua leitura particular de canções pouco conhecidas de cânones da música brasileira, como Noel Rosa, Lamartine Babo e Sinhô, entre elas, pérolas como “Você Só… Mente”, “Não Quero Saber Mais Dela” e “Pierrô Apaixonado”, todas embebidas em um humor que se equilibrava entre a ironia e a ingenuidade. Essa atmosfera dá o tom em “Olhando a Paisagem”, música de Luiz Tatit, lançada em 1986 no álbum “Caprichoso”, o terceiro do grupo. Ali, o protagonista aguarda ansiosamente a chegada de Odete. Nesse ínterim, o Rumo colocou na praça o LP “Diletantismo”, de 1983.
“Rodopio” (vanguarda, 1991) – Luiz Tatit
O último disco da primeira fase do Rumo foi o registro de um espetáculo ao vivo, lançado em 1991, mas algumas canções daquele repertório continuaram com Luiz Tatit em sua carreira-solo. É o caso de “Rodopio”, música de construção tão envolvente que chega a se confundir com um hit radiofônico da era pop. “Ah, tem que ser/ Tem que ser hoje que eu vim/ Que eu vim com tudo que tem/ Que tem a ver com você/ Você bem sabe que sim/ Que simplesmente é assim/ Assim que vejo você/ Você de frente pra mim/ Eu me arrepio, grito, pulo/ Assobio, gesticulo e rodopio/ E vou girando/ Até cair no meio-fio”, avisa freneticamente a abertura da música. Na sequência, Tatit insere a sua mordaz visão crítica da vida, pois todos os galanteios não conquistam a pessoa amada.
“Felicidade” (vanguarda, 1991) – Luiz Tatit
“Quanto ao canto falado, como diz o Luiz Tatit, do Grupo Rumo, ele pertence a um universo que já era explorado pelo cantor Mário Reis, de certa forma, e que o Tatit consolidou, com seu modo genial de falar sobre assuntos prosaicos. A (cantora) Ná Ozetti lacrou, interpretando lindamente aquelas músicas do Rumo”, elogia Wandi Doratiotto, companheiro de geração da Vanguarda Paulista e vocalista do grupo Premeditando o Breque, depois rebatizado Premê. “Felicidade”, uma das obras-primas de Luiz Tatit, investe no canto falado, mas vai além, com sua letra que coloca o ouvinte em um divã psiquiátrico. Aqui, a panaceia do mundo ocidental, a busca desenfreada por essa tal felicidade, é abordada de maneira sagaz, irônica, com várias nuances.
“O Rei” (vanguarda, 1997) – Luiz Tatit
Uma parábola em forma de canção. Assim pode ser descrita “O Rei”, música lançada por Luiz Tatit em 1997, no disco “Felicidade”, o primeiro de sua carreira-solo. A imagem tirânica usualmente atribuída à figura real é substituída por adjetivos ligados à complacência e generosidade. Esse rei sequer se importa de ser motivo do riso e deboche de seus súditos. Porém, como no mito grego da esfinge, um dia aparece, na terra, um enigma que nenhum dos habitantes é capaz de decifrar e, para retomar a tranquilidade, eles pedem a ajuda ao soberano. A resposta esperada desvenda o mistério inerente à canção. Mas aqui, novamente, fica clara a capacidade de Luiz Tatit de lidar com a linguagem e explorar as suas possibilidades poéticas, melódicas e reais.
“Capitu” (vanguarda, 2000) – Luiz Tatit
“A Ná é uma das maiores cantoras que o Brasil já teve em todos os tempos. Para a nossa felicidade, sua carreira também se iniciou no Rumo. Sua vivência na banda por mais de uma década fez com que ela desenvolvesse uma dicção raríssima entre nossas cantoras, aliás, abandonada desde Carmen Miranda. A Ná tem a agilidade rítmica da Elis Regina, a extensão vocal da Gal Costa, um timbre de voz lindíssimo e, além de tudo, sabe “dizer” o que canta como só se viu anteriormente em Carmen Miranda”. Os elogios de Luiz Tatit são mais do que justos e justificam porque, em tantos momentos, ele escolheu Ná Ozzetti para interpretar suas canções. “Capitu” apareceu primeiramente no disco “O Meio”, de Tatit, no ano 2000, e foi regravada por Ná em 2004, em “Estopim”. O ponto de partida da canção é a personagem dúbia do autor Machado de Assis.
“Baião de Quatro Toques” (vanguarda, 2003) – Luiz Tatit e Zé Miguel Wisnik
Luiz Tatit recebeu de Zé Miguel Wisnik a melodia de “Baião de Quatro Toques” já com a indicação de que ela deveria remeter à Quinta Sinfonia de Beethoven. Imbuído dessa missão, Tatit desenvolveu a letra, com a sua particular perspicácia. “Quando bater no coração/ Quatro pancadas e depois um bis/ Pode escrever não falha não/ É a tentação de ser muito feliz”, introduz Tatit, antes de fazer uma referência direta: “É uma quinta sinfonia de Beethoven/ Que decantou e só ficou a raiz”. A música foi lançada por Zé Miguel Wisnik em 2003, no álbum “Pérolas aos Poucos”, em registro que contou com a participação especial da cantora Jussara Silveira, e foi regravada por Tatit em 2005, em “Ouvidos Uni-vos”, que ainda trazia parceria com Itamar Assumpção.
“Dodói” (vanguarda, 2005) – Luiz Tatit e Itamar Assumpção
Todas as cadeiras do pequeno Teatro Marília, em Belo Horizonte, estavam ocupadas quando Zélia Duncan estreou na cidade, em 2012, o espetáculo “Totatiando”, em homenagem a Luiz Tatit. Ao interpretar a música “Dodói”, parceria de Tatit e Itamar Assumpção (1949-2003), a cantora não resistiu. “No universo do teatro, estou autorizada a não controlar esse tipo de emoção diante do público. Não conseguiria se não fosse verdadeiro, até porque não tenho essa técnica”, observa Zélia, explicando as lágrimas daquela ocasião. “Dodói” foi lançada por Tatit em 2005. A canção, uma das últimas de Itamar, não chegou a ser gravada pelo autor dos melancólicos versos, que descreviam sua agonia na batalha contra o câncer de intestino: “Eu ando tão dodói/ Mas tão dodói/ Que quando ando dói/ Quando não ando dói/ Meu corpo todo dói/ (…) Até meu dom dói/ Pois quando canto/ Não importa o tom dói”, resume o artista.
“Sem Destino” (vanguarda, 2010) – Luiz Tatit
Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura, comparece em “Sem Destino”, uma das mais delicadas letras de Luiz Tatit. A personagem mais famosa da obra de Miguel de Cervantes ajuda a fomentar as intersecções sobre a falta de destino que o compositor apresenta. Lançada em 2010, em disco que trazia a faixa como título, “Sem Destino” lamenta: “Tudo que era o meu destino/ Na verdade nunca me aconteceu/ Pode ter acontecido/ Pra alguma pessoa/ Mas não era eu”. A música foi regravada por Zélia Duncan, no show “Totatiando”. “A Zélia sempre me pareceu surpreendente, no melhor sentido do termo. De suas interpretações impecáveis a que mais me tocou foi ‘Sem Destino’”, avalia Tatit.
“De Favor” (vanguarda, 2010) – Luiz Tatit
Se valendo tanto de metáforas quanto do aspecto físico do coração, Luiz Tatit elabora a arquitetura da música “De Favor”, lançada por ele em 2010, no álbum “Sem Destino”, um dos melhores de sua prodigiosa carreira. É graças a esse recurso linguístico que o romantismo convive, harmoniosamente, com a doce reflexão da melancolia na letra. “Fui viver de favor/ Nesse seu coração/ Me alojei num lugar/ Que é talvez um porão/ Não tem luz não tem cor/ Mas tem ar do pulmão”, poetiza o compositor, que também abre espaço para flechas lançadas por cupidos e “o som que vem do fundo do músculo que é um dos últimos locais de sonho dos casais”. Ao reinterpretar essa pérola no espetáculo em homenagem a Luiz Tatit, a cantora Zélia Duncan reproduziu esse coração.
“Por Que Nós?” (vanguarda, 2010) – Luiz Tatit e Marcelo Jeneci
Músico polivalente, Marcelo Jeneci decidiu passar de coadjuvante a protagonista com o lançamento do primeiro disco solo, “Feito Pra Acabar”, em 2010, que arrebanhou elogios da crítica e um público cativo. No repertório, parcerias com nomes consagrados, como Chico César, Arnaldo Antunes, José Miguel Wisnik e Luiz Tatit. Foi com o fundador do grupo Rumo que Jeneci compôs “Por Que Nós?”, canção que reflete sobre o papel de uma geração e presta homenagem à Vanguarda Paulista. Lançada simultaneamente pelos compositores, no disco de Jeneci ela conta com a participação da cantora Laura Lavieri. “Sempre tem gente pra chamar de nós/ Sejam milhares, centenas ou dois/ Ficam no tempo os torneios da voz/ Não foi só ontem, é hoje e depois”, diz o refrão que, na versão de Tatit, aposta num arranjo magnânimo.
“Do Meu Jeito” (vanguarda, 2016) – Luiz Tatit e Vanessa Bumagny
A singela personagem de “Do Meu Jeito” é tão carismática quanto indecisa, e parece ter nascido sob o signo de Libra. Afinal de contas, Luiz Tatit, um dos compositores, veio ao mundo nos últimos dias do mês de outubro, e uniu seu talento ao da jovem Vanessa Bumagny para compor essa cantiga lírica. A música foi lançada em 2016, no álbum “Palavras e Sonhos”, de Tatit, e nos apresenta esse dilema de forma irresistível. “Digo não, mas o sim não demora/ Digo não bem baixinho pra dentro/ Mas o sim sai bem alto pra fora”, admite o eu-lírico da letra. No mesmo álbum, Tatit deu voz a “Planeta e Borboleta”, que conceitua: “Não sei se sou ser humano/ Ou se sou borboleta”. Pois o poeta não se prende a limites ou definições. Luiz Tatit segue rumo próprio na nossa MPB.
“Estaca” (vanguarda, 2019) – Luiz Tatit e Paulo Tatit
“A contundência da melodia do Paulo, com aquele acompanhamento que parecia golpes de caratê, me levou à ideia de ‘bater estaca’, algo que já se dizia para criticar um gênero musical que tocava no rádio, e, a partir disso, comecei a explorar também a aliteração dos fonemas ‘est’ que me levaram a outras palavras possuidoras desse som. Mas havia também uma melodia mais romantizada se contrapondo ao bate-estaca, que eu aproveitei para criar a narrativa amorosa que dá coerência à faixa como um todo. Essas melodias que possuem um caráter especial bem definido são até mais fáceis para o letrista do que aquelas habituais, ligadas a um gênero prévio, como samba, rock, reggae”. Assim Luiz Tatit explica a criação de “Estaca” com o irmão Paulo Tatit.
Foto: Gal Oppido/Divulgação.