100 anos de Dick Farney: canto suave e refinado armou cama à bossa nova

*por Raphael Vidigal Aroeira

“e a longa suavidade do mover-se dela,
salgueiro e oliveira refletidos,
Águas de arroio preguiçosas,
topázio contra a palidez da folha” Ezra Pound

O canto suave e enxugado de Dick Farney talvez tenha sido o primeiro, ao lado de Lúcio Alves, a retomar essa expressividade menos alarmante na música brasileira desde o pioneirismo de Mario Reis. Nascido no Rio de Janeiro, Dick imortalizou, com cacoetes de pré-bossa nova, verdadeiros hinos, de que são exemplos “Não Tem Solução” (Dorival Caymmi e Carlos Guinle), “Copacabana” (Braguinha e Alberto Ribeiro), “A Saudade Mata a Gente” (Braguinha e Antônio Almeida), “Uma Loira” (do mineiro Hervé Cordovil), e mais tantos clássicos. Cantor de técnica impecável e interpretação capaz de caminhar entre a sensualidade e a doçura – logo muito menos lembrado do que aconselha um país com memória –, ele veio ao mundo com o nome de Farnésio Dutra e Silva, há exatos 100 anos.

Relevância. Convém contextualizar a importância hoje ignorada de Dick Farney. O Brasil inspirado no canto italiano e expansivo de Vicente Celestino e os que vieram depois com igual ou maior impacto, caso dos impressionantes Francisco Alves, Carlos Galhardo, Silvio Caldas, Orlando Silva e, logo ali na frente, Nelson Gonçalves, começava a ter um contato mais próximo, por exemplo, com as vozes americanas de Nat King Cole, Bill Evans e demais artistas ligados ao jazz, rapidamente denominados cool, ou seja, soavam mais intimistas.

Como de praxe, a assimilação brasileira não foi apenas de expressões idiomáticas, mas transferiu-se para a própria maneira de conceber a canção. Dick, ao seu piano, com nome artístico copiado dos ianques, era elegante, moderno, cosmopolita e cantava suas terras de palmeiras.

A grande voz. Em 2017, o grande Zuza Homem de Mello lançou “Copacabana: A Trajetória do Samba-Canção (1929-1958)”, que, em mais de 500 páginas, discorre sobre a formação e a influência do gênero no qual se consagraram Maysa, Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran, Nora Ney, Angela Maria, Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves, Dick Farney e tantos outros.

Ao dividir os capítulos por temáticas, ao invés de cronologicamente, Zuza elege os artífices do movimento. “Lupicínio é o grande letrista. Nora Ney, a grande voz feminina, e, Dick Farney, a masculina”. E completa o raciocínio com uma provocação aliada a aula de história. “O samba-canção teve dez anos de auge, a Tropicália teve só dois. O primeiro da história é ‘Linda Flor’, do Henrique Vogler, de 29”.

Influência. Inicialmente acordeonista, João Donato iniciou a carreira tocando em sessões de jazz na casa de Dick Farney, onde compareciam nomes como Johnny Alf, Nora Ney, Dóris Monteiro, Paulo Moura e Jô Soares. Antes de migrar para os Estados Unidos, estreitou seus contatos com o samba-canção ao namorar a compositora Dolores Duran. Já na terra de Chet Baker e Eddie Palmieri (tocou com os dois), apresentou João Gilberto ao músico Stan Getz.

Rivalidade. No Brasil, Frank Sinatra influenciou dois dos mais importantes cantores pré-bossa nova, que, não por acaso, incorporaram suavidade ao canto tradicionalmente empostado que se praticava no país e tinha, como referência, o bel canto italiano. Se os pais de Sinatra começaram essa história, ele tratou de singularizá-la, aparando os excessos e oferecendo ao público aquilo que os primeiros artistas abstratos chamaram de “essência”. Dick Farney e Lúcio Alves, valendo-se de uma inventada e incensada, principalmente através da imprensa, rivalidade, até cantaram em dueto, anos depois da fundação do “Sinatra-Farney Clube” e do “Dick Haymes Lúcio Alves Clube”.

Homenagem. Lançado de maneira póstuma, o disco “Cauby Canta Dick Farney” traz o último registro em estúdio de Cauby Peixoto, e foi gravado em março de 2016, dois meses antes de seu falecimento. A homenagem junta no mesmo álbum a obra de dois cantores que cultivaram estilos opostos de interpretação, e afiança a força do canto de Cauby até os últimos momentos de sua vida. “Uma Loira” está no repertório.

“Copacabana” (samba-canção, 1946) – Braguinha e Alberto Ribeiro
Braguinha, que também atendia pela alcunha de João de Barro, foi o criador de marchinhas que alegraram gerações, como “Turma do Funil”, “Linda Loirinha”, “Yes, Nós Temos Bananas” e “Pirata da Perna de Pau”. Com Lamartine, ele compôs “Cantores do Rádio”. Em 1936, Carmen Miranda lançou a sua canção “Balancê”, que ganhou uma versão de Gal Costa em 1979. Com Alberto Ribeiro, o seu parceiro mais frequente, ele também compôs inúmeros sambas-canções de sucesso, de que é um dos exemplos mais bem-sucedidos a linda “Copacabana”, lançada por Dick Farney em 1946, em clima de alegria e bossa.

“Marina” (samba-canção, 1947) – Dorival Caymmi
“Marina” conta a história do homem fragilizado diante da força sedutora da sua mulher. Inspirada num mau trato do filho pequeno de Dorival, o que viria a se tornar o cantor e compositor Dori Caymmi, então com três anos de idade, que repetia “tô de mal com você”, quando contrariado. E foi nesse pequeno gesto infantil que Dorival percebeu que o homem contrariado tende a abolir as questões da maturidade, razão pela qual os romances são sempre difíceis. Fora isso, a canção lançada em 1947 por quatro cantores diferentes (Dick Farney, Francisco Alves, Nelson Gonçalves e o próprio autor), rompeu com uma lenda da indústria fonográfica e marcou um costume feminino dessa época que veio a se consolidar nas décadas seguintes: o de se maquiarem.

“Somos Dois” (samba-canção, 1948) – Klecius Caldas, Armando Cavalcanti e Luís Antônio
Transformada em prefixo musical de Gonzagão, a toada “Boiadeiro” fora composta em 1951 por um coronel do exército. Se hoje poucos reconhecem o nome de Klécius Caldas (1919-2002), na época em que suas músicas alcançaram o sucesso tampouco era diferente. Autor do samba-canção “Neste Mesmo Lugar”, gravado por Dalva de Oliveira, e de “Somos Dois”, lançada por Dick Farney, além de inúmeras marchinhas eternizadas pelo cantor Blecaute, como “Maria Escandalosa”, “Papai Adão” e “Piada de Salão”, vencedora do Carnaval de 1954, Caldas foi um grande criador de hits dos anos 40 e 50, ao lado do parceiro Armando Cavalcanti, vizinho de edifício e colega de farda.

“A Saudade Mata a Gente” (toada, 1948) – Braguinha e Antônio Almeida
Demorou 38 anos até que alguém tivesse coragem de desmentir, numa letra de música, a dupla de compositores Braguinha (1907-2006) e Antônio Almeida (1911-1985). Elba Ramalho, Alceu Valença e Geraldo Azevedo não esperaram tanto tempo para se reunir novamente. O trio voltou aos palcos em 2016 com o show que celebrava os 20 anos do “Grande Encontro”, cuja estreia, em 1996, ainda trazia Zé Ramalho em sua formação. Dentre os muitos sucessos da apresentação, lá está “Chorando e Cantando”, parceria de Fausto Nilo com Geraldo Azevedo, que dá o “troco” na histórica toada “A Saudade Mata a Gente”, de Braguinha e Antônio Almeida, lançada, em 1948, por Dick Farney. O segundo verso da canção de 1986 é definitivo: “Saudade já não mata a gente”.

“Uma Loura” (samba-canção, 1951) – Hervé Cordovil
O mineiro Hervé Cordovil (03/02/1914 – 16/07/1979) transitou pelos mais variados gêneros com a mesma eficácia, para dizer pouco. Isso porque o pianista, regente e compositor desencorajado por Eduardo Souto, diretor da Casa Edison, no início de carreira, escreveu parcerias com Noel Rosa, Lamartine Babo e Luiz Gonzaga, para citar alguns. E foi ele o compositor sozinho de um dos grandes sucessos de Dick Farney, “Uma Loura”, que pergunta “quem não teve uma loura?”, com seu charme grave e sua elegância. A música composta por Hervé Cordovil, em 1951, ganha em sensualidade ao receber os ares de Dick Farney, que canta como se cantasse a loura.

“Alguém Como Tu” (samba-canção, 1952) – José Maria de Abreu e Jair Amorim
“Alguém me disse/ Que tu andas novamente/ De novo amor, nova paixão/ Toda contente/ Conheço bem tuas promessas/ Outras ouvi iguais a essas/ E esse teu jeito de enganar/ Conheço bem”. Os versos da música de Evaldo Gouveia e Jair Amorim já foram cantados por Gal Costa, Alcione, Emílio Santiago, Ana Carolina, Agnaldo Timóteo, Nelson Gonçalves, Joanna e Simony, mas a gravação de Anísio Silva foi a responsável pelas mais de dois milhões de cópias vendidas, consagrando-o como o primeiro cantor brasileiro a faturar um disco de ouro. Antes, em 1952, e com outro parceiro, no caso José Maria de Abreu, o compositor Jair Amorim emplacou o sucesso “Alguém Como Tu”, lançado por Dick Farney, cantor que logo se tornaria uma mania na época.

“Sábado em Copacabana” (samba-canção, 1952) – Dorival Caymmi e Carlos Guinle
Já morando no Rio de Janeiro, o baiano Dorival Caymmi logo se encantou pela cidade e compôs junto ao carioca Carlos Guinle uma ode ao bairro de Copacabana, com dicas para os casais apaixonados. “Um bom lugar para encontrar, Copacabana/para passear à beira-mar, Copacabana/depois num bar à meia-luz, Copacabana/eu esperei por essa noite uma semana/um bom jantar depois de dançar, Copacabana/um só lugar para se amar, Copacabana”. Lançada por Lúcio Alves, a música teve uma bela regravação de Dick Farney.

“Tereza da Praia” (samba-canção, 1954) – Billy Blanco e Tom Jobim
Billy Blanco e Tom Jobim eram então dois rapazes quando foram encarregados de compor a “Sinfonia do Rio de Janeiro”, que contou com a participação de Elizeth Cardoso, Emilinha Borba, Nora Ney, Jorge Goulart, ‘Os Cariocas’, Dóris Monteiro, Dick Farney, os arranjos de Radamés Gnattali e outros. O sucesso foi tanto que a gravadora ‘Continental’, da qual faziam parte, logo os convocou para outro projeto ambicioso: criar uma canção que unisse Lúcio Alves e Dick Farney, tidos como rivais pelos fãs mais exaltados. Assim surgiu “Tereza da Praia”, uma das mais emblemáticas canções do período pré-bossa nova e que soube traduzir, como poucas, o charme e a simbiose entre Lúcio e Dick Farney. Lançada em 1954, teve regravação da dupla Caetano Veloso e Roberto Carlos.

“Este Seu Olhar” (samba-bossa, 1959) – Tom Jobim
Toquinho, que foi parceiro de Tom Jobim na turnê que reuniu Vinicius de Moraes e Miúcha, e que resultou no antológico álbum gravado no Canecão (RJ), em 1977, diz que quando a música começou a entrar na sua vida, mesmo antes da Bossa Nova, Tom já vinha incorporado nela em canções que ele ouvia nas vozes de Agostinho dos Santos, Maysa, Dick Farney, Lúcio Alves. “Toda a minha geração aprendeu com Tom. Sua música é genial e supervalorizada no mundo todo”, destaca. Dick Farney, por exemplo, regravou com êxito o samba-bossa “Este Seu Olhar”, lançado pelo cantor Luiz Cláudio no ano de 1959.

“Garota de Ipanema” (samba-bossa, 1963) – Tom Jobim e Vinicius de Moraes
“Garota de Ipanema” é, ainda hoje, a música brasileira mais executada em todos os tempos dentro e fora do país. Uma típica peça de bossa nova, composta por dois dos maiores nomes da cena, o poeta Vinicius de Moraes e o maestro Tom Jobim, em 1963, a música segue o “doce balanço” da garota em versos e melodias, num ritmo parecido ao do mar, distante e sereno em sua força, seu poder de síntese e ebulição. Assim, as imagens do corpo feminino ganham na natureza, e através dela, seu ideal de perfeição. “Moça do corpo dourado, do sol de Ipanema, o seu balançado é mais que um poema, é a coisa mais linda que eu já vi passar”. Foi regravada, entre outros, por Dick Farney.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]