10 músicas de Walter Franco para enfrentar dias difíceis

*por Raphael Vidigal

“cantando o pássaro por dentro por onde o canto dele afina a sua lâmina mais língua enquanto a língua mais lamina” Haroldo de Campos

Walter Franco renega o título de “maldito” com que a imprensa o etiquetou durante as décadas de 1970 e 1980 ao lado de artistas como Jards Macalé, Sérgio Sampaio, Luiz Melodia, Itamar Assumpção, Fausto Fawcett, Jorge Mautner, Luís Capucho e Arrigo Barnabé. Para ele, “essa história é uma balela e um equívoco”. “Por muito tempo tentaram nos estigmatizar com essa corrente, restringir o nosso público, sendo que, aonde vamos, o teatro lota, com pessoas da minha geração e uma juventude muito curiosa e ávida”, contesta.

Ele prefere a palavra “vanguarda” e diz que ela “expressa melhor o sentimento daqueles que procuraram fugir do óbvio, mas sem a preocupação ou imposição de soar desta ou daquela maneira”. “Aprendi com o meu pai, que era poeta, que devemos sempre fugir do lugar-comum como o diabo foge da cruz, e, sem querer, repeti o lugar-comum e me tornei de domínio público”, diz, ao constatar que muitos de seus versos, cuja concisão é inspirada pelos haicais japoneses, “são repetidos pelas pessoas sem que elas saibam que fui eu que escrevi”, declarou em 2017.

“Cabeça” (vanguarda, 1972) – Walter Franco
O júri formado por Nara Leão, Décio Pignatari, Júlio Medaglia, Roberto Freire e Rogério Duprat elegeu “Cabeça” como a vencedora do Festival Internacional da Canção de 1972, mas o compositor Walter Franco jamais recebeu o prêmio. No intervalo da apresentação, as vaias estrondosas da plateia e a presença de militares do regime ditatorial resultaram na remoção do júri, e o primeiro lugar acabou com “Fio Maravilha”, de Jorge Benjor, interpretada por Maria Alcina. O episódio é elucidativo do tipo de música que Walter Franco produziu. Assim como seus pares, notadamente Itamar Assumpção e Jards Macalé, ele renegou a vida inteira o rótulo de “maldito”, colado em artistas inconformados que encheram a música brasileira com trabalhos experimentais e de pura vanguarda.

“Me Deixe Mudo” (vanguarda, 1973) – Walter Franco
Walter Franco foi um dos compositores mais inventivos da música brasileira, difícil de ser etiquetado pelo mercado fonográfico, cabendo a ele, apenas, a alcunha de músico de vanguarda. Em 1972, no Festival Internacional da Canção, o júri formado por Nara Leão, Décio Pignatari, Júlio Medaglia, Roberto Freire e Rogério Duprat, elegeu “Cabeça”, de Franco, como a melhor canção, mas ele jamais recebeu o prêmio, porque as vaias da plateia e a presença dos militares da ditadura resultaram na troca de jurados. Em 1974, ao ter todas as suas músicas censuradas, Chico Buarque gravou “Me Deixe Mudo”, lançada com minimalismo por Franco em 1973, que ganhou a voz de Alice Caymmi em 2019.

“Feito Gente” (vanguarda, 1975) – Walter Franco
A canção “Feito Gente”, de Walter Franco – presente no segundo álbum de sua carreira, “Revolver”, de 1975 – foi incluída na trilha sonora da série “Os Dias Eram Assim”, transmitida pela Rede Globo em 2017. A produção retrata o período da ditadura militar no Brasil, que perdurou de 1964 a 1985. “Tenho uma história dentro desse contexto, como tantos outros. Minha família foi afetada diretamente pelo regime e teve problemas sérios. Meu pai (Cid Franco, poeta e vereador socialista) foi cassado e morreu sem saber que tinha sido anistiado. Então, representa um presente dos deuses a minha música estar ali para contar essa era das trevas, traumática. Porém, sem sentimento de rancor ou revanchismo ideológico. Sou pacifista”, declarou o artista, que morreu em 2019.

“Berceuse dos Elefantes” (vanguarda, 1978) – Walter Franco
Minimalista, dono de um estilo único dentro da canção popular brasileira, influenciado pela cultura oriental e os haicais de origem japonesa, o construtivista Walter Franco, um dos principais nomes da nossa geração de vanguarda, lançou, em 1978, “Berceuse dos Elefantes”, com a concisão precisa de uma lâmina, em contraposição ao aspecto opulento do animal que o inspira. O elefante foi adotado como mascote pelo ABC de Natal como homenagem a seu Estado, o Rio Grande do Norte, cujo formato se assemelha ao animal grandioso.

“Coração Tranquilo” (mantra, 1978) – Walter Franco
“Sou da geração que não tem pressa nem demora. Como diria Gonzaguinha: ‘A vida é bonita’. Não coloco prazo para nada. As coisas nunca estão na prateleira, prontas. Até a última hora se cria”, declarou Walter Franco, em 2017, quando trabalhava num novo disco de inéditas. Na ocasião, ele se jactava da citação feita pelo então procurador geral da República, Rodrigo Janot, em 2015, num embate com Eduardo Cunha, que na época ainda era presidente da Câmara dos Deputados. “Ele recitou os meus versos mais famosos: ‘tudo é uma questão de manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo’”, recordava, em alusão à letra mântrica de “Coração Tranquilo”, que, mais importante do que estar na boca de uma autoridade da República, passou a ser replicada em forma de pichação pelas ruas e muros do país, sem autoria, o que orgulhava o cantor.

“Canalha” (rock, 1979) – Walter Franco
“Essa música cabe perfeitamente ao nosso momento político, pois vem numa crescente até o apoteótico grito final. E precisamos desse grito. Mas muitas pessoas se enganam, acham que é de um outro alguém. Enquanto ela foi feita por mim para falar dessa dor existencial que acompanha a natureza humana desde o momento que a gente nasce, algo meio inexplicável. Eu sou um buscador de autoconhecimento”. Essa é a explicação de Walter Franco para a letra de “Canalha”, um rock pesado que recebeu regravações do grupo de punk baiano Camisa de Vênus, em 1987, e do irreverente Jards Macalé, já em 2015.

“Vela Aberta” (balada, 1979) – Walter Franco
Na capa do disco “Vela Aberta”, lançado por Walter Franco em 1979, o compositor aparece com o rosto no breu, levemente iluminado, como se pelo calor de uma vale acesa. Mas a vale a que o músico se refere na canção-título é, na verdade, a que ajuda os barcos a navegarem por meio da força do vento, como fica claro nos versos. “Lá vai uma vela aberta/ Se afastando pelo mar/ Branca visão que desperta/ Anseios de navegar”. A canção é uma síntese da capacidade de Walter Franco em despertar muitos sentidos com poucos recursos, estimulando a ambiguidade por meio da concisão. O mesmo álbum trouxe as regravações para “Feito Gente” e “Me Deixe Mudo”, além de “Canalha”.

“O Relógio” (infantil, 1980) – Vinicius de Moraes e Paulo Soledade
Em 1970, Vinicius de Moraes lançou um livro infantil baseado na trajetória bíblica da Arca de Noé. O livro conta a história dos animais que embarcaram na viagem chuvosa de 40 dias e 40 noites através de poemas bem humorados e singelos. Com o talento para manusear as palavras que ele tinha, a obra se transformou em especial da Rede Globo, exibido no dia das crianças do ano de 1980. As poesias foram musicadas por Toquinho, Tom Jobim, Paulo Soledade e outros amigos de Vinicius. E cantadas por Chico Buarque, Milton Nascimento, Elis Regina, Alceu Valença, Ney Matogrosso e outros talentos da arte do canto. Devido ao sucesso do espetáculo, apresentado no ano da morte de Vinicius, um ano depois surgiu a continuação: Arca de Noé 2, com poemas tão encantadores quanto os primeiros. Pois coube a Walter Franco dar voz à instigante “O Relógio”.

“Serra do Luar” (balada, 1981) – Walter Franco
Ao ter todas as suas músicas censuradas, Chico Buarque lançou, em 1974, “Sinal Fechado”, disco de intérprete em que gravou “Me Deixe Mudo”, de Walter Franco. Alice Caymmi deu uma nova versão para a canção em 2019. A intérprete que catapultou a obra de Walter Franco ao estrelato, no entanto, foi a paraense Leila Pinheiro, que transformou “Serra do Luar” no maior sucesso de ambos. Registrada pelo autor em 1981, recebeu o registro definitivo de Leila um ano depois, que sublinhava os delicados e existencialistas versos com precisão. “Viver é afinar o instrumento/ De dentro pra fora/ De fora pra dentro”. Com 6 álbuns lançados, Walter Franco deixou a promessa de um novo trabalho de inéditas e uma biografia a ser escrita pelo jornalista e crítico Thales de Menezes.

“No Exemplar de um Velho Livro” (balada, 1982) – Carlos Drummond de Andrade e Walter Franco
Um dos orgulhos do inventivo e inclassificável Walter Franco foi ter recebido a aprovação do próprio Carlos Drummond de Andrade quando musicou, em 1982, os versos de “No Exemplar de um Velho Livro”, para seu disco lançado no mesmo ano e intitulado apenas “Walter Franco”. Publicado pelo autor mineiro em 1954, no livro “Fazendeiro do Ar”, o poema marca o estilo conciso e sintético de Drummond sem, contudo, dispensar a alta gama de possibilidades estéticas e interpretativas da obra, fundada numa visão existencialista do mundo, de que serve de exemplo os versos: “e um grave sentimento/ que hoje, varão maduro,/ não punge, e me atormento”. “Drummond me disse que, depois de ouvir a minha interpretação, não conseguia imaginar a música cantada de outra forma. Fiquei em êxtase, quase em transe”, declarou Walter Franco.

Foto: Fábio Braga/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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