*por Raphael Vidigal
“Aos caminhos, eu entrego o nosso encontro.” Caio Fernando Abreu
Existem muitas duplas históricas na música popular brasileira, como Tom e Vinicius, João Bosco e Aldir Blanc, Vitor Martins e Ivan Lins, Luiz Gonzaga e Humberto Martins, Cazuza e Frejat, Rita Lee e Roberto de Carvalho, mas é difícil encontrar uma tabelinha que supere o sucesso de Roberto Carlos e Erasmo Carlos. Ícones da Jovem Guarda, eles estenderam o prestígio para além das fronteiras do movimento juvenil e se consagraram como dois dos principais compositores do cancioneiro nacional, sendo regravados por Nara Leão, Elis Regina, Gal Costa, Marina Lima, Adriana Calcanhotto, Marília Pêra e muitos outros. Selecionamos alguns sucessos históricos da dupla pra matar a saudade.
“Quero Que Vá Tudo Pro Inferno” (rock, 1965) – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
Nara Leão foi a primeira artista a dedicar um álbum inteiro à obra de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, quando artistas da MPB torciam o nariz para a dupla da Jovem Guarda. O que Nara não esperava é que depois ela teria problemas com isso. Batizado de “…E Que Tudo Mais Vá Pro Inferno”, verso retirado de “Quero Que Vá Tudo Pro Inferno”, rock de Roberto e Erasmo que se tornou o maior sucesso de 1965, o disco teve o título censurado pelo Rei, que passou a renegar a música por conta de sua conversão religiosa, que se tornou cada vez mais fanática. O disco de Nara fez tanto sucesso que teve até uma versão em castelhano, lançada no mercado latino. Apesar das polêmicas, ficou na história.
“Gatinha Manhosa” (balada, 1965) – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
A dupla Roberto Carlos e Erasmo Carlos enveredou por um caminho mais sentimental e através de metáforas para abordar a relação com os animais de estimação. No auge da Jovem Guarda, em 1965, os dois criaram uma das mais românticas e sensíveis canções do gênero, em que o adjetivo para se referir à protagonista se impregna em cada verso da letra. “Gatinha Manhosa” utiliza-se da visão do próprio animal, normalmente dolente, e, vez ou outra, atrás de um afago; e do sentido de galanteio que a expressão recebeu com o passar dos anos: “Um dia gatinha manhosa eu prendo você no meu coração…”. A música foi regravada por Adriana Calcanhotto, sob a pele da personagem infanto-juvenil Adriana Partimpim, e repetiu o sucesso de seu lançamento.
“Como É Grande o Meu Amor Por Você” (balada, 1967) – Roberto Carlos
Roberto Carlos vinha, aos poucos, de descolando do título de ídolo da garotada para se consagrar como o Rei da música brasileira. Um dos principais ativos nesse movimento foi apostar em canções mais maduras, que deixavam para trás o espírito juvenil e rebelde, em busca de declarações de amor capazes de acalentar corações de todas as idades. “Como É Grande o Meu Amor Por Você” destoa do repertório de “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”, LP lançado em 1967, exatamente por esse motivo. A balada se eternizou como uma das mais tocadas em festas de casamento país afora, e empilhou regravações de nomes como Nara Leão, Fagner, Ivete Sangalo, Fábio Jr., Sandy, Lulu Santos, Roberta Miranda, Nelson Gonçalves, Joanna, Oswaldo Montenegro e muitos outros mais.
“Se Você Pensa” (soul, 1968) – Erasmo Carlos e Roberto Carlos
Era nítida a implicância de Elis Regina com a Jovem Guarda, tanto que, em 1967, ela liderou a famigerada Passeata Contra a Guitarra Elétrica, que contou com as adesões de nomes de peso como Gilberto Gil, Edu Lobo, Geraldo Vandré e Jair Rodrigues, dentre outros. Dois anos depois, no entanto, ela já estaria convertida. Com produção de Nelson Motta, gravou “As Curvas da Estrada de Santos”, em 1970, no disco “Em Pleno Verão”, e interpretou a mesma música ao lado do próprio Roberto Carlos, em espetáculo ao lado de Miele, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal, Wilson das Neves, entre outros. A aproximação, no entanto, começou antes, em 1969, quando Elis registrou o soul “Se Você Pensa”, de 1968 e que ganhou uma divertida versão feita por Erasmo com As Frenéticas em 1978.
“Sua Estupidez” (balada, 1969) – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
A histórica parceria entre Roberto Carlos e Erasmo Carlos rendeu hits juvenis e românticos do porte de “Sentado à Beira do Caminho”, “Detalhes”, “É Proibido Fumar” e “Minha Fama de Mau”, consagrando a dupla que alcançou o estrelato com o movimento da Jovem Guarda, sob os auspícios do controvertido produtor Carlos Imperial. Em 1969, Roberto lançou “Sua Estupidez”, logo tomada por vozes femininas de toda ordem. A mais marcante gravação foi feita por Gal Costa, no revolucionário espetáculo “Fa-Tal: Gal a Todo Vapor”, dirigido por Wally Salomão, que bradava contra as atrocidades da ditadura militar e clamava por liberdade no ano de 1971, a que se seguiram versões de Alcione, Ná Ozzetti, Sophie Charlotte, Bárbara Eugênia e, mais recentemente, de Flora, no ano 2020.
“120… 150… 200Km Por Hora” (rock, 1970) – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
Em 2009, quando do lançamento do álbum “Elas Cantam Roberto”, Marília Pêra brindou o público com uma interpretação ainda mais teatral e sincera de “120… 150… 200km por hora”, sucesso de Roberto Carlos e Erasmo Carlos já na pós-Jovem Guarda, mas ainda sob o signo rebelde e desbravador do movimento. Ao ambiente de carros e estradas, os compositores aliam uma reflexão sobre a existência, perpassada, como de praxe, por desilusões amorosas. O que permanece na interpretação de Marília Pêra é a força com que a artista se entregou à arte, pois ao que parece estar em seu domínio é totalmente dela. E assim quem ganha é o público. E que venham vários aplausos para Marília Pêra.
“Sou Uma Criança, Não Entendo Nada” (rock, 1974) – Erasmo Carlos e Giuseppe Artidoro Ghiaroni
Em 1974, Erasmo Carlos compôs, com o poeta e jornalista Giuseppe Artidoro Ghiaroni, mais um dentre os inúmeros sucessos da Jovem Guarda. “Sou Uma Criança, Não Entendo Nada”, lançada por Erasmo, e depois regravada em parceria com Arnaldo Antunes e mais tarde por Lulu Santos, se vale de um perspicaz jogo de palavras e situações para pôr em xeque as condições pré-estabelecidas do adulto e da criança. Na composição, Erasmo e Ghiaroni expõem a ânsia da criança em se tornar adulto, e, na sequência, a nostalgia desse mesmo adulto em relação à sua infância, quando “por dentro com a alma atarantada/ sou uma criança, não entendo nada”, reafirmam nos versos finais da canção, também gravada pela banda gaúcha Cachorro Grande e pelo compositor carioca Oswaldo Montenegro, entre outros.
“Meu Ego” (blues, 1977) – Erasmo Carlos e Roberto Carlos
No final de 1977, Nara Leão e Erasmo Carlos apresentaram no programa “Fantástico”, da Globo, a música “Meu Ego”, mais uma parceria do Tremendão com Roberto Carlos. A música havia sido lançada, naquele mesmo ano, no LP “Os Meus Amigos São Um Barato”, confirmando o pioneirismo de Nara, que dava a partida nos álbuns de duetos na música brasileira. Além de receber Erasmo na referida faixa, ela ainda abria alas para Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Jobim, Chico Buarque, Edu Lobo, Dominguinhos, João Donato e outros ícones da MPB. No ano seguinte, em 1978, a música seria incluída no disco “Pelas Esquinas de Ipanema”, de Erasmo. Mais tarde, ela foi regravada por Simone e Zélia Duncan.
“Mesmo Que Seja Eu” (rock, 1982) – Erasmo Carlos e Roberto Carlos
Sabe o clichê “antes só do que mal acompanhado”? Pode ser uma boa resposta ao eu lírico da canção de Erasmo Carlos. “Mesmo Que Seja Eu” é o relato de um homem sobre a vida, segundo ele solitária, de uma mulher. Talvez a intenção dele tenha sido se declarar um homem apaixonado e protetor e é nesse ponto que, muitas vezes, torna-se difícil identificar o abuso em um relacionamento: “Filosofia e poesia/ É o que dizia minha vó/ Antes mal acompanhada do que só/ Você precisa de um homem/ Pra chamar de seu/ Mesmo que esse homem seja eu/ Um homem pra chamar de seu/ Mesmo que seja eu”. A canção foi regravada por Marina Lima no LP “Fullgás”, onde ela habilmente reverteu o sentido original.
“Dá Um Close Nela” (rock, 1984) – Erasmo Carlos e Roberto Carlos
Em 1984, a dupla Roberto Carlos e Erasmo Carlos lançou a música “Close”, que popularmente ficou conhecida como “Dá Um Close Nela”. Evidente homenagem para Roberta Close, ela foi lançada e interpretada por Erasmo em clipe protagonizado pela modelo e atriz, sem dúvidas a mais famosa transexual do Brasil. A beleza de Roberta foi sempre tão marcante que ela se tornou a primeira transexual a estampar a capa da revista Playboy no país. Cumpre ressaltar o talento da artista como atriz, com atuação destacada no filme “O Escorpião Escarlate”, de Ivan Cardoso, num número de strip-tease. A música enaltece as qualidades físicas de Roberta Close, uma mulher na acepção da palavra, com todos os seus atributos. Ainda enfrentando preconceitos, Close é exemplo de luta e dignidade para todas que desejam usufruir de sua sexualidade livremente.
*Bônus
“Meu Menino Jesus” (natalina, 1998) – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
Os mais conceituados letristas e melodistas brasileiros pegaram papel, caneta e instrumentos para criar canções natalinas. Embora a temática se repita, a abordagem revela uma diversidade incrível de impressões sobre a festa, passando pela exaltação, a alegria, a reflexão, a tristeza e a melancolia. O humor também marca presença, assim como o samba, a marcha, o pop e a valsa. Para muitas pessoas, Natal e Roberto Carlos são quase sinônimo. Claro que o Rei não poderia deixar passar a celebração sem compor uma música, no caso, em parceria com Erasmo Carlos, o seu mais frequente parceiro. O aspecto religioso determina toda a letra da canção, que foi regravada pela cantora Célia em 2008.
Foto: Marcos Arcoverde/Estadão Conteúdo.